quinta-feira, 4 de junho de 2015

Nada, mamãe! Não foi nada!

CRÔNICAS DA MINHA INFÂNCIA


Ainda hoje minha velha me tira o sarro. 
Seis ou sete anos, finalmente ganhei uma lata de óleo de algodão. Naquela época se usava pouca gordura na alimentação, e a pouca usada era animal. Do tipo que o aparelho digestivo aprendeu a domar há centenas de milhares de anos. Bem, fazer meu caminhão; enfim. Em qualquer lugar, isso teria um grande valor; mas na minha Itabaiana caminhoneira desde que se descobriu que poderia ir vender castanhas, batata-doces, fava, andu, manga, caju... até no Rio de Janeiro, Santos e São Paulo, aí não mais parou. Ainda é quase uma obrigatoriedade, no mínimo gostar de caminhão. Mas, fazer como? Minhas habilidades de artesão, se hoje não são lá essas coisas, em 1966 ou 67 era um Deus nos acuda. Sem irmãos, uma raridade naqueles tempos de famílias numerosas, tinha que ser eu mesmo. Pedir faca, martelo, serrote e pregos à mamãe, nem pensar; era pedir e receber um rotundo não. Fui então no aió do papai, peguei, escondidos, o martelo e o serrote; arranjei pregos – um pouco grande, mas... – em uma sacola, cheia de bregueços, tomei a faca de cozinha e lá me vou. Fazer meu “bruto”. Seria um “trucado”, modelo recém aparecido com três eixos e a febre entre os aficionados. Pensando bem, um trucado daria mais trabalho; por enquanto ficaríamos no simples, de dois eixos. Começar pelas rodeiras – os supostos pneus. Fui à casa de uma vizinha cheia de filhos, ter com dois deles, meus amigos, para arranjar uma japonesa velha. Japonesa, para os que não viveu aquela linguagem, era como se chamava as sandálias de arrasto recém aparecidas, onde a mais popular já era a Havaianas e ainda hoje é. Sua textura macia, porém firme o suficiente pra não dobrar sobre o peso do caminhão e de sua carga era o ideal. Consegui. Um par quase novo que os constantes pregos colocados na tira de entre dedos a danificara de modo irrecuperável... só uma nova. Era! Naquela época se consertava tudo: até relacionamentos quebrados. Ganhei-as e retornei pra casa todo contente. Lá, num telheiro sozinho, tranquilo e concentrado, começo a fazer as rodeiras. Um desastre de acabamento, mas, quem sabe se com tanta teimosia não acertaria? De repente, a danada da faca que estava cortando a borracha sofrivelmente resvalou e pegou no indicador esquerdo. O “vermelho” cobriu. Dor, medo, e noto que mamãe já tinha retornado e se aproximava. E agora? Nem chorar podia. Seria denúncia explícita. Apertei o dedo sangrando e pus as mãos atrás das costas. Ela, com certeza veria o trabalho não licenciado de tentar construir o carrinho; mas, não veria a desgraceira que acabara de fazer, pensei. Mas, mãe é mãe! Sexto sentido acima de tudo. "Que foi que houve, rapazinho? Porque está se tremendo?" Perguntou ela. Prontamente, dando uma de homem, macho: "Nada, mamãe! Não foi nada." Ela mais encostou, tomou-me os braços e viu o tamanho do prejuízo. Não disse uma só palavra. Pegou a mesma faca, atravessou o pequeno terreiro que nos separava das fruteiras do quintal, chegou numa bananeira, cortou uma palha e da lá veio com ela, pingando a água que da palha saia, o que fez o sangue coagular de imediato. Em seguida, foi lá dentro, pegou um pedaço de “voil” quase branco, acho que havia sido usado como fraldas anteriormente, com aquele cheiro de fundo de mala, rasgou-lhe uma tira delgada e amarrou no meu dedo para proteger de novos sangramentos e exposição.
Ainda hoje, quando alguma coisa parece estar escondida ela brinca a repetir a punição com que me passou a lembrar da desobediência durante quase toda a minha infância. Todas as vezes que sentia em mim a tendência em passar dos limites, lembrava o ocorrido com o “Nada, mamãe! Não foi nada!”.
Coincidentemente, dois anos depois ganhei um livro que ainda hoje preservo. Uma cartilha, da série Pátria Brasileira, Leitura I, de Renato Sêneca Fleury, Melhoramentos, São Paulo, 1943, presenteado por uma senhora já bem idosa, e nossa vizinha, de nome Maria Tereza, e, lá pelo meio do livro encontro uma historinha parecida com a minha, escrita pelo autor, intitulada “Ai meu fura bolos”. Mais um motivo de com o livro me identificar.
Que droga ruim seria a vida sem todo esse trajeto pelo qual passamos. A cada minuto, hora ou dia uma nova lição. Até que venha a última delas; que de fato, somente servirá pros que ficaram.

O presente texto me foi provocado pela fotografia supra, mais ou menos do tipo de carrinho que faria.